Com aquecimento do offshore e edital da Transpetro, indústria naval começa a se mobilizar por ciclo de encomendas
Construir um novo ciclo de construção naval no Brasil nunca foi encarado como tarefa simples. Após mais de 10 anos sem encomendas em larga escala e com uma crise de confiança, o setor precisou se unir em busca de soluções conjuntas para reerguer a atividade. Em nível de governo, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) concentrou as discussões e criou grupos técnicos para debater propostas mais consistentes para a retomada das atividades. Especialistas acreditam ser possível, mas reiteram que existe um caminho a ser perseguido, principalmente para que as políticas setoriais ultrapassem os mandatos presidenciais e se consolidem em planos de Estado.
Quase um ano após a última edição da Navalshore, a Transpetro anunciou o primeiro edital do programa de renovação e ampliação da frota da Transpetro (TP25), que prevê a construção de 25 navios no longo prazo. O primeiro certame tem como objetivo a aquisição de quatro navios de transporte de produtos claros de 15 mil a 18 mil TPB (toneladas de porte bruto), classe Handy, para operações de cabotagem no litoral brasileiro. A abertura das propostas está prevista para o próximo dia 7 de outubro.
A Transpetro espera receber esses quatro primeiros navios até meados de 2028. O cronograma do edital, publicado no começo de julho, prevê o lançamento ao mar da primeira unidade no primeiro semestre de 2026, com as demais sendo entregues sucessivamente a cada seis meses. Essas primeiras unidades integrantes do TP25 estão previstas no grupo dos 16 novos navios que constam no plano estratégico da Petrobras (2024-2028).
Além dos quatro Handy, outros 12, entre gaseiros e embarcações de médio porte, estão em fase de estudos junto ao setor de governança da controladora. Os nove restantes têm chance de serem incluídos no próximo plano de negócios da holding. A Transpetro prevê um custo do projeto dos 25 navios próprios entre US$ 2 bilhões e US$ 2,5 bilhões.
A subsidiária da Petrobras espera concluir, até dezembro de 2024, todas as fases de governança do sistema Petrobras para lançar, até janeiro de 2025, um edital para contratação de gaseiros. Na sequência, a Transpetro pretende publicar, em meados de 2025, edital para aquisição de navios Medium Range (MR I e MR II). A intenção é que as outras nove embarcações do TP25 — possivelmente MRs I e II — sejam incluídas no próximo plano estratégico da Petrobras (2025-2029), com edital saindo até final de 2025.
“Falamos de quatro editais para construção de navios no Brasil, sendo que 16 navios já estão no plano estratégico [2024-2028] e trabalharemos para colocar os outros nove no PE 2025-2029 [da Petrobras]”, detalhou o presidente da Transpetro, Sérgio Bacci, durante coletiva de imprensa sobre o detalhamento do TP25, na sede da empresa, no Rio de Janeiro (RJ).
Na ocasião, Bacci ponderou que, apesar de a inclusão no plano estratégico depender dos critérios de governança da holding, essa demanda de navios saiu de estudos feitos entre a Transpetro e a Petrobras. “Foi um trabalho feito coletivamente e a Petrobras nos mostrou a demanda que ela teria nos próximos anos. Esse número de 25 navios saiu deste trabalho, sendo que 16 estão OK e nove vamos estudar para por no novo plano estratégico”, afirmou Bacci.
A presidente da Petrobras, Magda Chambriard, ressalta que será uma licitação internacional aberta, permitindo a participação de todos os estaleiros que atenderem aos critérios técnicos e econômicos previstos no edital. Ela considera que o início da sequência de novas contratações vai contribuir para a geração de valor para Petrobras e para o fortalecimento da indústria naval e offshore nacional. “Nesse processo, a garantia de igualdade de oportunidades para estaleiros nacionais e internacionais certamente resultará em impulso para a indústria naval nacional”, declarou Magda.
Ela espera que o programa reduza a exposição da empresa a oscilações de fretes e reduza os custos com afretamentos de embarcações, além de ampliar a capacidade da logística de petróleo e derivados. Na coletiva, Bacci salientou que os navios serão essenciais para o atendimento à Petrobras e reduzirão essa exposição às oscilações, principalmente porque há baixa liquidez de embarcações deste porte no mercado.
O presidente da Transpetro acrescentou que os Handy vão incorporar tecnologias de eficiência energética para reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE), atendendo às determinações da Organização Marítima Internacional (IMO). “Hoje é um dia muito importante para a Transpetro e o sistema Petrobras porque marca a retomada dos investimentos em frota própria”. disse Bacci.
O Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval) recebeu com satisfação a licitação da Transpetro, a qual considera reforçar o compromisso com a retomada do setor naval nacional. “A nova licitação é um marco para a navegação brasileira, que tanto esperou para voltar a impulsionar o motor da economia que cerca essa atividade, ajudando no desenvolvimento econômico e social do país”, manifestou o sindicato em nota.
O Sinaval destaca que a indústria está pronta para operar e que os estaleiros contam com um parque instalado de nível mundial, com investimentos de modernização e construção recentes de novas plantas, além de recursos aplicados em gestão, governança e integridade. A diretoria da Transpetro considera que todos os estaleiros nacionais de grande porte estão aptos, desde que comprovem capacidade econômica e técnica. Caso contrário, o concorrente poderá ser desclassificado, conforme preveem as regras da licitação.
“Acredito que os estaleiros nacionais vão responder à nossa demanda porque estão, há muitos anos, sem ter encomendas. E que teremos proposta não só de estaleiros nacionais como de internacionais porque, há muito tempo, não se tinha demanda”, comentou o presidente da Transpetro.
O argumento é que a estratégia de construir, em vez de afretar, esses navios levou em conta as regras de governança da holding, que faz estudos para verificar o que é melhor para o sistema Petrobras, além de diálogos com todos setores da empresa nos últimos anos, mostrando números estimados de quanto custa afretar, construir no Brasil e construir no exterior. Bacci garante que houve um diálogo amplo entre a Transpetro e o sistema Petrobras.
“Chegou-se à conclusão que é mais barato para o sistema Petrobras hoje construir do que afretar porque esses navios Handy são de baixa liquidez no mercado — não tem tanto navio no mercado, o que encarece o preço do afretamento. É mais interessante para o sistema Petrobras construir para fazer frente à baixa liquidez”, argumentou Bacci.
Ele acrescenta que a legislação não proíbe que estaleiros em recuperação judicial participem desses projetos, desde que comprovem a capacidade técnica e econômica. “Todos os estaleiros que cumprirem os requisitos técnicos e econômicos da concorrência estão aptos para construir os navios que serão adquiridos”, reforça Bacci.
O presidente da Transpetro ressalta que a licitação seguiu integralmente as regras de governança e integridade do sistema Petrobras e que todos os estudos demonstram a economicidade favorável à aquisição dos novos navios frente ao afretamento de embarcações. “Essas aquisições de navios anunciadas são um grande estímulo à indústria naval brasileira e esperamos que os estaleiros nacionais aproveitem esta oportunidade”, afirmou.
A administração do Estaleiro Mauá (RJ) tem observado, nos últimos tempos, um engajamento significativo em diversas frentes, nas esferas estadual e federal. O grupo cita frentes parlamentares multidisciplinares nas quais políticos, empresas e trabalhadores estão unidos em movimentos que visam impulsionar a demanda por construção de plataformas e embarcações no país. A avaliação do Mauá é que esse movimento conjunto reflete um esforço coletivo para promover o crescimento e a revitalização do setor naval nacional.
O estaleiro demonstra otimismo com a abertura da primeira licitação pela Transpetro, que representa um potencial novo ciclo de encomendas para estaleiros no Brasil. “Nossa expectativa é que o processo efetivamente ocorra dentro do país e esperamos que um estaleiro brasileiro seja selecionado para executar o projeto. Estamos prontos para contribuir com nossa expertise e capacidade técnica para atender às necessidades e expectativas desse importante processo para o setor naval nacional”, diz o diretor comercial do Estaleiro Mauá, Arialdo Félix.
Na avaliação do Mauá, os segmentos com maior potencial para uma eventual retomada da construção de projetos navais de maior porte no Brasil incluem a construção de PSVs (transporte de suprimentos), navios e FPSOs/módulos. O estaleiro enxerga que esses segmentos representam diversas oportunidades dentro da indústria naval, cada um contribuindo de maneira única para o desenvolvimento e crescimento econômico do país.
Félix reconhece que a interrupção de encomendas nos últimos anos representa a perda de experiência e transmissão de conhecimento para geração mais nova. Ele ressalta que muitos profissionais estão aposentados, mas que o Mauá conseguiu, apesar de toda dificuldade, manter o mínimo necessário desta mão de obra qualificada. “Temos a estrutura fabril necessária para o que temos construído com os nossos clientes. O mais importante é certificar de maneira realista as ações no sentido de prestigiar a indústria nacional. A geração de inúmeros empregos estáveis é o mais importante”, afirma Félix.
O diretor destaca que, no último ano, o Mauá alcançou resultados expressivos em diversas áreas. Ele menciona a ampliação significativa nos projetos de reparo e upgrade de embarcações, além da fabricação de estruturas subsea e da utilização do estaleiro como base de apoio logístico. “Nos últimos seis meses, aumentamos nossa mão de obra direta em aproximadamente 50%, o que não apenas fortaleceu nossa capacidade operacional, mas também gerou um impacto positivo significativo na economia local”, conta. Félix salienta que cada emprego direto criado no estaleiro tem potencial de gerar entre quatro e cinco empregos indiretos adicionais, beneficiando o desenvolvimento socioeconômico da região.
O Estaleiro Enseada (BA) também tem sentido um reaquecimento das demandas relacionadas a esse mercado, mas que ainda não foram convertidas em novas contratações. “O Enseada está pronto para retomar suas atividades. Embora não se possa ignorar os efeitos negativos causados pelo longo período de baixa demanda, que afetou a maior parte dos estaleiros brasileiros, temos convicção de que esta retomada, se executada de forma planejada, será sustentável e bem-sucedida”, analisa o CEO do Enseada, Ricardo Ricardi.
Ele afirma que o Enseada segue avaliando todas as oportunidades do mercado, mas que ainda não definiu se participará do processo recém-lançado da licitação da Transpetro. Na visão do Enseada, o Brasil tem uma grande variedade de estaleiros, de tamanhos e características diferentes, que têm potencial para atender às mais diversas demandas, desde embarcações de menor porte e complexidade até módulos de FPSOs.
Um dos principais êxitos do último ano da companhia, que passou a atuar também como um complexo logístico-portuário, foi o marco de dois milhões de toneladas movimentadas, com destaque para o início das operações de granéis vegetais. Além da conquista do terceiro lugar em premiação nacional da Antaq pela Conformidade Regulatória do terminal de uso privado (TUP).
O Enseada também vê a a caminhada rumo à descarbonização no setor marítimo de forma positiva. “O Brasil já é referência mundial na geração de energia sustentável e, em função do tamanho de sua frota, tem potencial para ser protagonista na implantação de novas tecnologias para descarbonização neste setor”, projeta Ricardi.
Para a Ecovix, é concreto o fato de que há encomendas já postas, mas muito aquém do que os estaleiros brasileiros têm capacidade. A avaliação da empresa, proprietária do Estaleiro Rio Grande (ERG), é que Petrobras e Transpetro continuam sendo as maiores contratantes, mas a demanda poderia ser maior. O diretor operacional da Ecovix, Ricardo Ávila, acredita que, pelo discurso do presidente da Transpetro, os segmentos de embarcações com mais potencial para uma eventual retomada da construção de projetos navais no Brasil serão os navios utilizados para o aumento da frota da companhia.
“Não está claro ainda qual o tipo, mas o mercado comenta sobre uma série de navios gaseiros”, comenta Ávila. Até o fechamento desta edição, o diretor operacional contou que a Ecovix ainda estudava o edital e respectivos documentos da licitação da Transpetro. “Há muitas variáveis que precisamos avaliar para definir a estratégia mais competitiva, já que é uma concorrência internacional”, pontua Ávila.
No último ano, o ERG realizou alguns projetos de reparos navais desafiadores, com bons resultados. “Nosso maior orgulho é que, em três anos nesse mercado, temos crescido ano a ano, principalmente mantendo clientes, sinal de que estamos no caminho certo”, ressalta. Ávila destaca que, no mercado de desmantelamento, o estaleiro obteve o primeiro contrato, pioneiro no país no modelo de reciclagem 100% verde, seguindo normas internacionais.
O executivo afirma que o ERG está pronto para novas obras e encomendas. Ele entende que, com relação à construção de cascos, o atingimento dos índices de produtividade que o estaleiro tinha em 2016 será difícil de ser alcançado nos próximos dois anos. A avaliação é que é preciso retreinar a mão de obra que o estaleiro conseguir captar no mercado e treinar novos profissionais, o que leva tempo. “Isso afeta diretamente a competitividade dos primeiros projetos, mas é algo que teremos que enfrentar. Do ponto de vista da infraestrutura, o estaleiro está pronto. Caso o projeto seja de construção/integração de módulos, há mão de obra treinada e disponível na região”, analisa Ávila.
O professor Luiz Felipe Assis, do curso de Engenharia Naval e Oceânica da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Poli-UFRJ), avalia que a discussão que está sendo conduzida pelo setor é importante, mas ainda falta uma política vertical, de Estado, que abarque não somente estímulos à indústria naval, com também contribua de forma consistente para a reindustrialização do país. Segundo Assis, a legislação brasileira hoje consegue proteger principalmente a navegação interior, que tem uma demanda relativamente pequena e importância regional.
Assis ressalta que o fortalecimento de toda a cadeia da construção naval é fundamental para o Brasil, que tem uma demanda firme das atividades ligadas ao setor de petróleo e gás. Ele defende que o Brasil não deveria abrir mão da perspectiva de desenvolver o setor industrial com base na riqueza do petróleo.
Para o professor, a engenharia é uma chave importante do setor naval. Ele lembra que existe uma quantidade de engenheiros experientes que saíram do mercado ou se aposentaram nos últimos anos. Assis chama a atenção para a necessidade de cultivar e renovar todo conhecimento adquirido ao longo de décadas, além de se buscar investimentos em tecnologia, para que se possa alcançar desenvolvimento e ganhos de produtividade.
Ele lembra que o segmento de apoio marítimo começou com projetos importados, depois desenvolveu outros no país e ganhou escala durante as fases do programa de renovação da frota de apoio marítimo (Prorefam), permitindo a criação de toda uma cadeia de suprimentos. “É preciso pensar em regras de conteúdo local eficientes para que se tenha, ao menos, parte do projeto desenvolvido aqui e se possa agregar equipamentos e fornecedores nacionais”, diz Assis.
O professor acrescenta que, sem um volume grande de encomendas, a indústria não terá ganhos expressivos de produtividade. “É preciso pensar como privilegiar estaleiros, tecnologias e empregos aqui. Também precisamos avançar na discussão e ter políticas claras e objetivas sobre quais segmentos são mais estratégicos”, sugere Assis.
Fonte: Infomet.